domingo, 30 de agosto de 2015

A Volta ao Mundo do Cinema Brasileiro em 80 filmes: 3 - Ganga Bruta de Humberto Mauro

Minha primeira reação ao terminar de assistir a esse filme de Humberto Mauro foi: Lindo! Não consegui me conter face ao encanto visual e musical dessa obra prima. Apesar de se tratar de uma versão restaurada pela Cinemateca Brasileira, esse filme de 1933, realizado para a Cinédia de Adhemar Gonzaga, me causou uma impressão forte tanto visualmente quanto em termos sonoros.
Talvez influenciado pela leitura que venho fazendo do livro de Jacques Aumont e Michel Marie – A Análise do Filme – o uso que Humberto Mauro fez de muitos planos detalhes e a articulação entre músicas e espaços cênicos disntintos me chamaram a atenção. A partir de composições de Radamés Gnattali, Humberto Mauro faz uso da música de forma extradiegética compondo diferentes humores visuais e emotivos nos momentos em que o filme se desenrola por espaços tão diversos quanto uma construção, uma igreja, uma taverna, um quarto e jardins, entre outros. São poucas as vezes que a música tem uma função diegética. Em um dos momentos mais marcantes, pelo menos para mim, de Ganga Bruta, ao final do dia, em um grupo de músicos reunidos um deles passa o violão para outro e pede para que ele toque “aquela música de outro mundo”. Essa música vai ser o ponto de partida para um flashback em que Marcos, o protagonista da trama, relembra a tragédia que o fez sair do Rio de Janeiro e ir para Guaraíba supervisionar uma obra de engenharia.
Reproduzo a análise que Lovisi (2010, p. 442) faz do uso da música em Ganga Bruta:
... Ganga Bruta é, em sua maior parte, um filme em que falas e ruídos estão ausentes, o que fez aumentar a importância da trilha musical como ferramenta de auxílio ao drama encenado. No filme de Mauro, a trilha musical aparece em, praticamente, toda a trama e contribuí para a efetivação dos objetivos comunicativos da estória.As composições de Gnattali reafirmam o que é revelado na tela através de uma relação de subordinação da música às imagens. Pelo uso de uma série de recursos musicais herdados principalmente do teatro e da ópera, pode-se compreender parte do processo de criação da obra: cenas tristes recebem música em modo menor, em contraste com o modo maior que aparece em situações alegres, por exemplo. Músicas de andamento ligeiro acompanham cenas de lutas e confusões, numa tentativa constante de ressaltar musicalmente os movimentos físicos das personagens.
No conjunto, em Ganga Bruta se observa a estrutura narrativa clássica dos filmes de Hollywood que havia se tornado um modelo que, já naquela época, se tornava dominante e que segundo Morettin (2007) era o padrão que se via enfatizado na Revista Cinearte e na produtora Cinédia, ambas de propriedade de Adhemar Gonzaga. No entanto, Morettin (2007) argumenta que há nos filmes de Humberto Mauro uma certa resistência ao uso do típico happy end das produções hollywoodianas.

Aliás, nesse mesmo texto Morettin faz uma descrição da trajetória cinematográfica de Humberto Mauro, desde seus primeiros filmes em Cataguases entre 1925 e 1930, primeiro de forma independente e depois para a empresa Phebo Sul America Film, passando em seguida para o período da Cinédia (entre 1930 e 1934), seu longo período como diretor técnico do Instituto Nacional do Cinema, tendo chegado a contribuir em filmes de Nelson Pereira dos Santos e Paulo Cesar Sarraceni nos anos 70 do século passado. Nascido em 1897, veio a falecer em 1983, deixando uma grande produção e reconhecido como “pai” do Cinema Novo por Glauber Rocha (Morettin, 2007, p. 58). Morettin sugeriu que o corpus fílmico que nos legou Humberto Mauro merecia uma análise crítica mais profunda dada a sua diversidade temática e volume de trabalho.
Para mim, conhecer este filme em minha volta ao mundo do cinema brasileiro deixou-me maravilhado em saber que nas raízes do cinema nacional há um Humberto Mauro que Stam e Johnson (1979) qualificaram como o mais importante realizador que surgiu nos anos 20.

Ficha Técnica (retirada de https://www.youtube.com/watch?v=-UHfXmVt1Jk, onde se pode ver o filme)
Observação: Nos crédito do filme Humberto Mauro aparece responsável, também, pela montagem.
GANGA BRUTA, 1933, Rio de Janeiro, RJ.
prd: Adhemar Gonzaga; dir e rot: Humberto Mauro; arg: Octávio Gabus Mendes; fot: Afrodísio de Castro e Edgar Brasil; cam: Paulo Morano; elc: Armando Barreto; crp: Saturnino da Silva; sng: Bechara Jorge; mus: Radamés Gnatalli e Humberto Mauro; clb: Oswaldo Martinez; ext: Ilha das Cobras, RJ; crt: Carlos Eugênio; muf: Ganga bruta, de Heckel Tavares e Joracy Camargo, Teus olhos...água parada, de Radamés Gnatalli, Coco de praia 1 e 2, de Heckel Tavares, todas interpretadas por Moacyr B. Rocha. p&b, 35mm, 85 min, cpr, lab e dis: Cinédia, gen: aventura. 
ELENCO: Durval Belline, Lu Marival, Carlos Eugênio, Déa Selva, Décio Murillo, Andréa Duarte, Alfredo Nunes, Ivan Villar, Francisco Bevilacqua, Renato de Oliveira, João Cardoso, Edson Chagas, Elza Moreno, Mário Moreno, Pery Ribas, Humberto Mauro, Adhemar Gonzaga, Sérgio Barreto Filho, Ayres Cardoso, João Baldi, João Fernandes, Paulo Marra, Olga Silva, Sérgio Barreto, Glória Marina.
SINOPSE: Marcos, rico engenheiro, casa e mata a mulher na noite de núpcias para salvar sua honra. Julgado e perdoado, ele se refugia no interior do país, a pretexto de acompanhar a construção de uma fábrica. Lá encontra Sônia, mocinha alegre e sensual, pela qual se apaixona e, por causa disso, luta contra Décio, o noivo de sua amada. Décio jura vingar-se; Sônia, deflorada por Marcos, suplica a Décio que não o mate. No duelo que se segue, Décio resvala e cai numa cachoeira, afogando-se.

AUMONT, J.; MARIE, M. A Análise do Filme. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2013.

LOVISI, D. M. Radamés Gnattali e a trilha musical no cinema brasileiro. I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música; XV Colóquio do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO (Anais), p. 441-449, Rio de Janeiro, 8 a 10 de novembro de 2010.

MORETTIN, E. Humberto Mauro. Alceu, v. 8, n. 15, p. 48-59, 2007.

STAM, R.; JOHNSON, R. Beyond Cinema Novo. Jump Cut: A Review of Contemporary Media, n. 21, p. 13-18, 1979.

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